Desde 2015, o GIP abriu suas portas para receber visitas de outros profissionais da saúde, psicanalistas e estudantes interessados em nossa atuação. Convidamos o visitante a participar de um ou mais encontros do grupo como mais um interventor, e não um mero observador, e vivenciar junto com os jovens e com a equipe uma tarde de trabalho. Fazemos a aposta de que a presença do olhar de um estrangeiro produz efeitos muito importantes tanto no grupo de pacientes quanto na equipe.
Luísa nos procura interessada em realizar uma dessas visitas. Depois de participar de 2 encontros do GIP, Luísa escreveu crônicas sobre essa experiência que trazem esse olhar estrangeiro sobre o fazer do grupo e contam dos efeitos que essa vivência produziu nela.
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O trabalho no GIP me foi apresentado em um fórum no XI LEPSI na UFMG. Desde então, me senti convocada a visitar o projeto, com configuração bastante singular para alguém que há pouco começou o percurso na academia. Curso Psicologia na PUC-SP e aproveitei o trabalho da disciplina de Grupos: Teorias e Práticas com o professor Jorge Broide para realizar as tais visitas interessada, inclusive, em viver esse encontro que parte do pressuposto de que o lugar de observação transforma e é transformado no decorrer do cuidar. Assim, procurei o grupo na intenção de registrar as minhas impressões nesse lugar do fora que entra, ou, como chamam, de estrangeira. Das duas visitas que realizei, apresento aqui alguns trechos de como me tocaram os encontros ali vividos.
Luísa Moreira
Crônica da primeira visita ao GIP
22.06.2017
Luísa Moreira
"A clínica no dia a dia na cidade"
Travessa Dona Paula
Cheguei dez minutos antes do combinado no GIP - Grupo de Invenção e Pesquisa. Como é de praxe nas visitas a essa instituição, eu havia passado por uma conversa com a equipe de acompanhantes terapêuticos que, duas vezes por semana, recebem jovens com grave sofrimento psíquico para o que chamam de "oficina do vazio". Por pesquisas anteriores, eu entendi que esse nome bonito significava que as demandas das atividades surgem nos encontros, não sendo programadas de antemão.
O grupo se reúne numa vilazinha florida cheia de casas, logo em cima do Cemitério da Consolação. Naquele começo de tarde batia uma bonita luz de inverno. Um ambiente bem agradável.
Parei na campainha, esperando alguma resposta para subir. Nada. Depois de dois minutos, chega uma moça, que julgo fazer parte do grupo. Percebendo que estou esperando, ela pega a minha mão e diz apenas "vem comigo". Subimos a escada, ela tenta abrir a porta. Não conseguindo, simplesmente se vira e vai embora. "Ok, esse é o meu começo no grupo", pensei.
Depois de algum tempo, quando chega uma das psicólogas, a moça reaparece ao seu lado. Observo, de longe, o diálogo, que é bem gestual. A jovem parece agitada, enquanto a psicóloga pede que se acalme enquanto procura a chave da porta. Pelo modo como flui, parece que tal cena já ocorrera antes.
Entramos na casa.
Casa 02
Ambos os profissionais, Ana e Daniel, sempre uma fala muito clara, seja ao se dirigir às jovens, a mim ou ao outro. Parecia que se preocupam com uma boa dicção e altura da voz, mais do que isso, com serem compreendidos. Passei a imitá-los.
Entra a segunda jovem, Bárbara, sem bater à porta ou dizer oi. O grupo do dia estava completo. Ela logo se apresenta para mim e começa a fazer um interrogatório sobre minha vida, família, casa. Ao descobrir meu aniversário, logo o anota no calendário do grupo. Esse foi o momento em que percebi que definitivamente seria um exercício singular de cronista por ser a segunda vez em que era absolutamente tragada para dentro do encontro grupal.
A partir daí, parece que cada uma teve o seu processo para se preparar para sair: naquele dia, íamos comprar os preparativos para a festa junina que aconteceria no encontro seguinte.
Após um tempo, com o assunto da saída cada vez sendo mais trazido por ambos os ATs, ambas se acalmam e começam a se arrumar para sair: vamos à loja de decoração e ao supermercado. Todos pegamos os bilhetes únicos, carteira, celular. Saímos.
Rua da Consolação, Avenida Paulista, Rua Augusta
Ilsa e Ana, a psicóloga, saem na frente. Andamos pela Consolação. A tarde é bonita, mas caótica. Carros passam rápido, eventuais bicicletas, calçada cheia. Nada disso parece afetar a nenhum dos integrantes do grupo. Já eu, carrego dentro do peito um esforço de acompanhar tantas coisas que acontecem ali - cidade, carros, calçada, relações, pessoas, conversa.
Conversas eventuais. É um dia normal na vida daquelas pessoas, paulistanas em meio a tantos outros. Fico eu surpresa, meio atônita com a normalidade com que tudo acontece. Atravessamos a Av. Paulista.
Comentários levianos. Conversa fora. Bárbara passa pelo restaurante América e comenta que gosta de comer fora, mas só em dias especiais porque senão "fica caro".
Loja de decoração
Na loja de decoração, estavam muito naturais, à vontade, fazendo compras como os outros. As meninas transitavam ininterruptamente entre as prateleiras, eventualmente puxando algum assunto que os psicólogos manejavam mesmo com o foco que dedicavam para cumprir a lista de compras.
Pão de Açúcar
Chegando ao supermercado, o grupo se dispersou nas prateleiras e logo declarei como impossível a tarefa de acompanhar a todos os integrantes. Agora, fora, identifico esse momento como quando eu relaxei, assumindo que a vontade de estar com tudo e todos era minha. A partir de então, me permiti habitar no diluído que parecia formar aquele grupo.
Ao mesmo tempo em que cuidavam de atividades bem práticas, como comprar os ingredientes ou atender o telefone, os ATs também manejavam perguntas profundas que apareciam no corredor dos laticínios. A mim, que preferi manter alguma distância para não invadir o endereçamento das confidências, coube "pescar" fragmentos dos diálogos atravessados justamente pelas atividades práticas. Ilsa disparava, doce:
"Daniel, eu estava enlouquecida hoje?"
"Ana, o que é o amor?"
"O que é para você?"
"É gostar muito forte de alguém"
Ao longo do dia, reparei em muito poucas pessoas interessadas no grupo. Quando as meninas eram notadas, não senti apreensão ou preconceito, apenas calma e curiosidade quando muito. Pareciam estar muito bem integradas ali, o que era uma surpresa boa para mim. Senti que a isso muito se devia a segurança dos psicólogos durante todo o processo, somada à confiança de um com o outro.
Terminadas as compras, pagamos e fomos embora. Era hora de voltar.
Rua da Consolação
Saindo do supermercado, uma conversa com a Ana é interrompida por Ilsa, que tinha pego uma bolacha de um homem que acabara de abrir um pacote no meio da rua. A naturalidade como a qual todos lidaram com um episódio tão inusitado - inclusive tal imprevisibilidade pareceu naturalmente aceita - novamente me surpreendeu. Bárbara pareceu não notar o episódio, que rendeu sorrisos aos silenciosos transeuntes que acompanharam a cena.
Voltamos para a vila com poucas conversas; cada um sustentando o próprio silêncio.
Casa 02
Chegando de volta na casa, Bárbara foi direto contar o número de formas e arrumar os preparativos para sua receita no encontro seguinte. Enquanto isso, Ilsa requisitava a atenção de Ana, que, ajudando a outra jovem, não estava disponível. Ilsa, então, sentou-se no sofá e eu me sentei ao seu lado. Ela me disse "Luísa, gostei muito de te conhecer" para a minha surpresa, pois desde a apresentação no começo, ela não se dirigira a mim nenhuma vez. Tentei começar uma conversa, mas sua única resposta foi esparramar-se confortavelmente me olhando fundo nos olhos. Achei bonito esse conforto, uma vez que começara o encontro tão agitada.
Despedidas curtas. Estávamos todos cansados ou era só eu?
Crônica da segunda visita ao GIP
29.06.17
Luísa Moreira
"Conviver em ruído"
Nesta quinta-feira, quando cheguei, às 14h30, a casa 02 da vila já estava "funcionante". Fernanda, da equipe clínica, arrumava o terceiro computador para Denis usar. Rogério e Bárbara já estavam cada qual na própria pesquisa, com igual rapidez e destreza no manuseio do computador ("jovens, afinal", pensei). Depois de mim, chegou Ilsa e o estagiário João, além da psicóloga Ana. Estávamos todos os sete na mesma pequena sala.
Logo no primeiro momento cumprimentos e conversas corriqueiras, os primeiros dez minutos, tudo já era absolutamente diferente da visita anterior. O espaço estava pequeno. Eu me senti um corpo de sobra ocupando espaço dentro de tanta coisa.
Fiquei ali solta por pouco tempo: Bárbara me trouxe para o mundo real ao me chamar para provar o último cupcake de paçoca que havia sobrado de sua receita para a festa junina na terça-feira anterior. Agradeci e ela logo voltou à sua frenética atividade de procurar receitas em várias abas, salvar fotos na sua pasta, checar o email, facebook.
Fui ver o que fazia Rogério. Assistia a Kung Fu Panda 3 no YouTube, reproduzindo todas as falas com uma dramatização e entonação surpreendentemente semelhantes às dos personagens. Eu conhecia o filme, então consegui manter uma conversa curta e inconstante sobre o assunto. Quando ia desistir, ele começou a se referir a mim no meio das falas das personagens e efeitos dos feitiços como se estivesse me contando aquela história. Ficamos assim por um tempo, até que acabou o vídeo e, talvez por consequência, a interlocução.
Percebi Denis ao meu lado. Estava quieto, apenas observando os colegas. Fernanda havia feito um curativo em seu machucado. Propus a ele que jogássemos um jogo. Ele escolheu baralho. Convidamos as outras pessoas, mas ninguém mais quis jogar conosco.
Sentamos no chão da outra sala e ele então me ensinou a jogar oito maluco e depois truco limpo. Do outro lado da parede, eu ouvia Rogério imitando seus filmes e a Bárbara fazendo ocasionais comentários sobre um casal de YouTubers que fazia vídeos sobre receitas. Cada qual no seu assunto. Eram raros os momentos em que Fernanda fazia alguma pergunta a algum deles.
Ilsa voltou animada para fazer um bolo. Chegou atravessando nosso monte de cartas algumas vezes em seu caminhar espaçoso - nem nos percebeu ali no chão. Após algumas reprimendas de Ana, ela começou a preparar o bolo junto com João. Acredito que isso tenha acelerado o fim do nosso jogo - pelo menos por minha parte; estava difícil de acompanhar tanta coisa simultaneamente e ainda prestar atenção em ganhar ou perder.
Rogério veio até mim e sentou ao meu lado. Perguntou o meu signo para fazer a correspondência com os Cavaleiros do Zodíaco. Depois disso, me contou por alguns minutos a história do Cavaleiro exilado de Sagitário – sempre em seu dialeto das histórias, com os nomes e a dramatização específicos. Em certo momento, levantou-se e continuou a conversa sozinho.
Finalizava-se o último encontro do grupo do semestre. Fiquei novamente surpreendida pela rapidez da despedida. Ficamos eu e a equipe pendurando o painel que chegara na parede. Foi o dia que chegou o segundo painel de fotos feito por Ilsa. Em clima ameno, o penduramos na parede em cima do sofá na segunda sala.
Talvez a despedida rápida tenha sido um reflexo do conforto e da segurança com que todos se relacionam com o grupo. Parecem familiarizados com tal rotina inventada. E, como combinado, em duas semanas, estariam todos de volta para partilhar aquele estar cuidadosamente coletivo.
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⇒ Para saber mais sobre como funcionam as visitas, escreva para o nosso email gipcontato@gmail.com
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